
A minha criança amava andar de bicicleta. Lembro do medo na primeira vez que tentei me equilibrar sobre duas rodas. Na verdade, quatro porque comecei com rodinhas. A felicidade foi maior quando já não precisava mais daquele acessório extra e do olhar vigilante dos meus pais. Recordo da sensação de liberdade, do vento batendo no rosto, mas não lembro ao certo quando fui enferrujando. O pneu deve ter arriado aos poucos. Não sei exatamente quantos anos se passaram sem que me levasse para passear. Até que comecei a sonhar de novo em pedalar. Estava separada achando que não daria conta de seguir sozinha com dois filhos na garupa quando decidi voltar a andar de bicicleta. Minha vida pedia mais leveza.
O passo seguinte era ter uma bike. Naquela época não existiam as magrelas disponíveis por aplicativo. E eu me sentia pesada, fora de forma, com excesso de pesos e medo de novas quedas. Estava tentando me levantar. Levou meses até que eu priorizasse essa compra. No dia que criei coragem para realizar meu desejo, cometi o erro de ir com meu filho no shopping. Lucca fez uma birra fenomenal na loja de departamento lotada. Gritava que a bicicleta dele precisava ser trocada. E estava pequena mesmo, mas – naquele momento – eu precisava mais de uma bicicleta. Ele não tinha como entender isso.
Aos 35 anos, eu estava reaprendendo na terapia a olhar para minhas necessidades, sonhos, estabelecer as minhas prioridades.Tentei argumentar, explicar para uma criança de 10 anos que ainda era pouco acostumada a ouvir não que comprar aquela bike em dez parcelas já era um ato de muita ousadia. Ele não entendeu, se jogou no chão, chorou cada vez mais alto… Não sei quem ficou mais vermelho: ele, com a birra, ou eu de vergonha. Diante dos olhares de julgamento dos estranhos, até pensei em deixar aquela compra para outro dia, mas decidi sustentar minha decisão. Respirei fundo e disse que, se ele não levantasse do chão e me acompanhasse, o deixaria na loja. Sozinho.
Sozinha. Andei até o estacionamento, de perna bamba, estancando o choro. Sem acreditar que tive coragem para tanto. Comprei a bicicleta, mas cheguei no carro destroçada sem ter dado uma pedalada sequer. Desaguei quando li a mensagem do gerente da loja dizendo que eu já podia voltar. Tinha trocado o telefone com ele e combinado esse limite necessário para meu filho. Hoje vejo que esse limite também me salvou. Assim como todos os outros que fui aprendendo a dar aos meus filhos, a mim mesma e às relações em que o NÃO se fez necessário.
Um NÃO – bem dado e em caixa alta – é curativo. Não vou dizer que é fácil estabelecer as bordas necessárias para os filhos e para a gente mesmo. Até hoje me vejo tentando aprender a dar um ponto final para o trabalho, a recusar propostas que colocam em risco minha saúde ou mesmo aquela comida deliciosa que pede bis mesmo sabendo que não vai me fazer bem. Tenho exercitado dizer não para convites tentadores quando o sono fala mais alto porque acordei cedo para jogar Beach Tênis. Tenho aprendido a dizer não para a preguiça quando, em pleno sábado, insisto em madrugar para remar. Chova ou faça sol. Meu banho de mar semanal é terapêutico.
Sou testada diariamente a sustentar a negativa para compras inúteis, independente do saldo bancário. A manter o não para exigências desnecessárias, relações adoecedoras. Limite é um desafio especialmente para nós, mulheres, que tentamos equilibrar a sanidade entre cuidado com os filhos, vida profissional, saúde e projetos pessoais. Sim! Porque quando nasce uma mãe, nasce também a culpa. E, às vezes, lá se vão anos até conseguirmos nos resgatar.
Quando voltei a pedalar, o sentimento era de renascimento. Tive até batizado no Jabutis Vagarosos, grupo liderado por Valci Barreto. Jornalista e pai de uma colega de profissão, ele me convocou para um passeio no dia do meu aniversário. O nome do grupo já dizia tudo. A proposta era pedalar sem pressa, contemplando a paisagem, desfrutando dos cantinhos da cidade, cheiros e sabores e, de quebra, fazendo novos amigos. Até então, todas as minhas saídas eram solitárias na ciclovia da orla ou no Parque de Pituaçu, meu quintal. Nunca havia pedalado em avenidas de grande fluxo, entre os carros. Fui com medo, muito medo mesmo! E, já na chegada, meu coração aquietou ao ver as bikes enfeitadas com bolas coloridas. Saímos da Barra em direção à Cidade Baixa. Era um domingo de sol e eu desci a Avenida Contorno com a alma quase escapando do corpo.
A experiência foi tão intensa que resolvemos organizar o Pedal da Imprensa. Entre uma pedalada e outra, estava envolvida na organização de um grande evento para celebrar o dia do jornalista. Cerca de 500 pessoas atenderam nosso convite. Contei com apoio de Valci e de muitos amigos mas, na reta final, achei que não ia dar conta. Na véspera do evento, tive uma enxaqueca tão forte que pensei que, além de não pedalar, ia morrer. Sou acostumada a divulgar eventos; não a produzir.
Na manhã seguinte, uma multidão de ciclistas – alguns desenferrujando o pedal – seguiu com a gente do Dique ao Farol da Barra. Lucca, com a bicicleta velha, seguia colado em mim durante todo percurso. Eu vibrava pelo feito, sem tirar os olhos dele. Ao final do passeio, me abraçou e disse: Foi massa, mãe! Mas minha bicicleta estava sem freios. Quase morri de culpa. Estava tão evolvida com tantos preparativos que não tive atenção com um item fundamental para a segurança do meu filho. Hoje, pego carona neste episódio, para lembrar que não sou uma mãe perfeita. Meus filhos cresceram tendo uma mãe ocupada, que vive correndo para dar conta de muitos papéis, que apagava antes deles quando tentava contar histórias antes de dormirem. Aprenderam a entender a aceleração que, muitas vezes, se fez necessária e criar defesa própria, como frear a bicicleta gastando a sola das sandálias quando necessário.
Sigo buscando partejar um olhar mais sensível para mim mesma, que inclua limites e também acolhimento para minha criança interior. Depois de redescobrir o prazer de andar de bicicleta, fui abrindo espaço para outros deleites. E a lista de desejos só cresce… Antes do final do ano, a menina que amava balé e jazz quer testar uma aula experimental de sapateado. Também quer aprender a andar de patins, mesmo ciente do risco de tombos. Aguarda ansiosa poder voltar à Chapada Diamantina para, enfim, conseguir tomar um banho na Cachoeira do Buracão. Minha criança sonha com férias. Com tempo livre para colocar as leituras em dia e escrever. Brincar com as palavras até não querer dizer chega!
Sempre há tempo para escrever uma nova história. Esse texto é prova disso, quase não nascia. Tinha planejado que fosse publicado no início do mês de outubro, como gancho pelo Dia das Crianças. As demandas de trabalho não me permitiram abrir a página em branco antes. Hoje, em pleno domingo de sol, sou feliz por estar aqui como quem brinca diante de uma sopa de letrinhas. Não tenho controle sobre o tempo, sobre a vida, nem mesmo sobre as crônicas que assino. Mas tenho a deliciosa certeza de que toda escrita pode sobreviver àsregras e dar uma rasteira nos prazos.
A minha criança aprendeu que tudo acontece no tempo certo. Que não há limite de tempo para despertarmos. Para voltarmos a fazer o que nos dá prazer, seja tocar violão, aprender um novo instrumento, um idioma. Praticar um esporte, artes marciais, dançar, tomar banho de lua,de mar, escrever poesias, desenhar, bordar, pintar o sete…. Nossa criança não precisa ser um grande artista. Ela só precisa de coragem para fazer arte, até na culinária sem se preocupar com julgamento dos críticos de plantão. Ela não exige presente caro. Viagens dispendiosas. Roupas da moda. Ela só quer ser vista. Ouvida. Nutrida. Pede só que a gente reserve tempo – um minuto que seja de qualidade – para que ela se revele. E seja feliz mesmo com a correria e assombros do cotidiano.
Hoje abro a caixa de brinquedos da minha memória afetiva para o convite que a vida tenta me fazer todos os dias. É sempre um desafio escapar da ótica viciada dos adultos para tentar enxergar com os olhos brincalhões da minha menina que insiste em não perder o entusiasmo diante das pequenas coisas. Que são grandes. Gigantes. E nos ensinam a desfrutar do mais simples da vida com encantamento, leveza e gratidão. E a sua criança? O que ela sussurra ou grita para você agora?
*Texto publicado no portal BAdeValor em 14 de Outubro de 2024
Fernanda Carvalho é jornalista, escritora, autora do Livro A Luz da Maternidade – Relatos de Parto sem Dor conduzidos por Gerson de Barros Mascarenhas.
E-mail: livroaluzdamaternidade@gmail.com
Instagram: @fernandacarvalho_cs
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