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O Risco

Ganhei um risco de presente do meu filho. Uma tatuagem que diz tanto sobre mim e sobre a releitura que tenho feito da vida. A inspiração para a minha nova tatoo nasceu ano passado, junto com meu livro gestado por 18 anos. Os boletos adiaram o sonho de imprimir mais uma arte na pele até que Lucca resolveu me dar de presente de aniversário.

Viajei no tempo enquanto Rick, um tatuador sensível que se tornou amigo do meu filho, materializava o desenho que já estava tão nítido na minha imaginação. Uma mulher por trás de um livro aberto, de onde brotam flores do campo coloridas dando vida à frase VEJO FLORES EM VOCÊ.

Voltei no tempo e me vi respondendo à pergunta de minha mãe quando fiz minha primeira tatuagem. Estava me recuperando de um divórcio doído e de uma longa e avassaladora depressão que quase me roubou a vida. Tinha sido convidada para palestrar no Dia da Mulher em uma empresa de saúde. Minha mãe foi minha convidada de honra. Ao sairmos, antes de almoçar, paramos em um estúdio sem que ela imaginasse o que eu faria lá.

Há alguns anos, eu também jamais acreditaria que faria uma tatuagem. Não sei se por preconceito. Não via necessidade de marcar meu corpo, ainda mais com algo definitivo neste mundo de tanta transitoriedade. Até que consegui colocar a cabeça para fora do casulo da depressão e entender o significado da BORBOLETA na minha vida. O sentido do que perdi e ganhei no dia 4 de dezembro. Dia de Santa Bárbara para os Católicos. Iansã no Candomblé. As dolorosas transformações que tive que passar para renascer da pele para dentro. Para brotar de novo, apesar de tudo.

Juro que achava que ia me contentar com um único risco. Aviso aos navegantes de primeira tatuagem: quando a gente começa a habitar o planeta dos riscados, essa missão é quase impossível. A segunda veio da que me resgatou. Fiquei tão feliz quando minha irmã também rompeu o padrão e estampou a palavra no pulso que pedi permissão para imitá-la. Para contar sobre a terceira e quarta, tenho que voltar para a pergunta de minha mãe.

– O que você vai falar para seus filhos quando eles quiserem fazer uma tatuagem?

Na época, Lucca tinha 10 anos. João apenas 5. E respondi sem hesitar:

– Vou dizer que eles podem fazer a partir dos 18 anos e serem felizes com seus corpos e desejos, independente do olhar e julgamento dos outros.

Lucca acabou fazendo a primeira tatuagem um pouco mais cedo, com minha autorização. Cedi para não ser engolida pela ansiedade dele em tempos de isolamento social. Em plena pandemia, aos 17 anos, fomos de máscara em uma manhã de domingo em um estúdio na Cidade Baixa. Saímos de lá ilesos à COVID. Ele com a primeira imagem tribal na perna. Eu com mais duas marcas no corpo. Os três CORAÇÕES no pé simbolizam a chegada do novo amor, além dos meus dois filhos. A felicidade era tanta que o amor saiu pulsando pelo cotovelo esquerdo também.

Aos 45 anos do primeiro tempo, confesso que senti um frio na barriga deitada na maca diante de Rick. Medo da agulha? Continuei sentindo uma cosquinha gostosa enquanto o desenho surgia apenas na tinta preta. Meu limiar para dor deve ser mesmo fora da curva. Estava disposta a ousar e espelhar uma imagem maior – desta vez com cores – já que as quatro tatuagens que exibo no corpo são bem discretas. Tive que respirar fundo algumas vezes para ver nascer o colorido na minha pele.

Ainda acho que o que torna tudo suportável – e até mais leve – é entender o processo. Tatuagem é uma dor escolhida. Exige da gente paciência para esperar o tempo certo do desenho – alguns podem levar dias – da cicatrização, alguns cuidados quando a marca acabou de nascer (evitar exposição ao sol, alimentos remosos, como camarão e carne de porco), autocontrole para suportar a coceira enquanto as casquinhas surgem. Ah, e só depois de descamar, é que a gente se encanta mais com o novo risco! Eu tô amando o meu! E acreditando na forte tendência de moda de looks com um ombro só nos 45 anos de meu segundo tempo de vida. 

Cada um é quem sabe o valor das marcas que decide tirar do coração, imprimir na pele e estampar para o mundo. São metáforas da nossa vida em construção. Neste estágio, a opinião do outro não faz a menor diferença. A minha, inclusive, em relação às marcas no corpo alheio. Por esta ótica, continuo não achando bonito mas entendendo mais sobre os que não deixam espaço em branco de respiro na pele, sedentos por contar sua história.

Pelas sincronicidades da vida, conheci o Pod Cast de Cris Pàz esta semana. Uma amiga, morando agora em outro país, me mandou uma mensagem que aqueceu meu coração sobre Amizades Femininas. Acabei escutando sem querer o episódio seguinte: A Crise da Tatuagem. Recomendo que ouçam!

Entre muitas histórias, ela conta a decisão de tatuar a palavra ALEGRIA no corpo após a morte do companheiro. Foi seu jeito de transformar a falta em presença. E de lembrar o quanto aprendeu sobre ALEGRIA com o pai do seu filho Francisco. Concordo com Cris: tatuagem pode ser antidepressivo. Tem efeitos muito além da estética.

*Por Fernanda Carvalho

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